sexta-feira, 20 de maio de 2016

A mitologia na faiança inglesa

A variedade da decoração da faiança inglesa não pára de me surpreender. Parecia-me a mim, mera amadora nestas questões, que os temas se esgotavam com os motivos vegetalistas, paisagens imaginárias ou cenas românticas, mas não. Há já algum tempo que fui descobrindo várias peças pertencentes a serviços de mesa decoradas com temas, que à luz dos gostos de hoje são no mínimo, surpreendentemente inesperados. É o caso desta travessa decorada com cenas da mitologia, uma das peças do grupo de que falo atrás, à qual não resisti e acabei por comprar pela curiosidade que me despertou.


Eu sei, que os meus comentadores habituais sabem bem, o quanto uma peça menos usual estimula a nossa curiosidade, levando-nos de pesquisa em pesquisa, aprofundando uns assuntos e descobrindo outros, com a esperança de ficarmos a conhecer melhor a peça em questão. Foi assim que, após alguma pesquisa descobri com muita satisfação a gravura que deu origem à decoração central desta travessa e que representa regresso triunfal de Dionísio de uma das suas campanhas à Índia.


Trata-se de uma das muitas gravuras que compõe a obra Collection of Etruscan, Greek, and Roman antiquities from the cabinet of the Honble. Wm. Hamilton, His Britannick Maiesty's envoy extraordinary at the Court of Naples, de Sir William Hamilton (1730 - 1803), diplomata escocês, arqueólogo e vulcanólogo que, ao longo da sua vida de teve oportunidade de fazer uma inestimável coleção de vasos gregos e italianos que acabou por vender ao Museu Britânico, não sem antes, mandar reproduzir as cenas destes vasos, nascendo assim a obra em quatro volumes, que refiro atrás.

The procession of Dionysos (fig. 51)
 Este catálogo inspirou várias manufaturas de cerâmica que não desperdiçaram a oportunidade de irem ao encontro do gosto do grande público pelos objetos de tendência neoclássica, surgindo assim o motivo compreensivelmente designado por “Greek”. 

Quanto à origem da minha travessa  que não está marcada e por comparação com outras peças atrevo-me a pensar que poderá se uma produção da Spode. Em todos os pormenores ela é igual às peças que podemos ver na exposição on line desta manufatura, apresentando as mesmas caraterísticas, ou seja,  para além da figura central,  lá estão na aba, os quatro vasos e os painéis figurativos sobre um fundo de parras e bagos de uva soltos pela folhagem.

Em exibição na Exposição on line da Spode
Mas, para me retirar a veleidade de pretensas certezas, sabe-se também, que há peças atribuídas a Herculaneum e a Minton com este padrão, embora com evidentes diferenças nos detalhes. Para aumentar as incertezas,  alguns autores referem mesmo que, em relação a Herculaneum, nenhuma das centenas de peças por eles vistas com estes motivos e atribuídas àquela manufatura apresentavam qualquer tipo de marca. 
Travessa atribuída a Herculaneum no Lovers of blue & white
Mesmo assim acreditam que este padrão terá sido usado em Liverpool, uma vez que, quando a fábrica fechou, foram encontradas uma série de placas de cobre usadas na técnica do transferer printing e uma delas ostentava o título de Charrioteers, referindo-se provavelmente ao motivo "Greek". Um destes autores, Peter Hyland refere mesmo que no museu de Liverpool, foram retiradas de exposição um grupo de peças com esta decoração, não marcadas  e atribuídas a Herculaneum, pois existiam  sérias dúvidas sobre a sua origem. Continua, afirmando que até ser encontrado um exemplar  "Greek" marcado, todas as peças devem ser consideradas de origem desconhecida.
Parte de um serviço atribuído a Herculaneum à venda na Christie's

Portanto, resta-me ficar muito contentinha com a minha travessa  sem marca e que há força de tanto olhar para ela, já não acho estranho se tivesse que aqui servir,  em cima deste Baco vitorioso, um rosbife acompanhado de esparregado, que acho que é coisa mais portuguesa.


HYLAND Peter. The Herculaneum Pottery: Liverpool's Forgotten Glory: Liverpool: university press, 2005

SMITH Allen. The Ilustrated Guide to Liverpool Herculaneum Pottery London Barrie & Jenkins 1970

http://spodeceramics.com/pottery/printed-designs/patterns/literature-mythology-arts/greek


7 comentários:

  1. Maria Paula, a sua travessa é lindíssima!
    Tem um motivo que raro tenho visto, mas que se percebe perfeitamente a sua origem. Seja Spode ou Herculaneum, é de uma qualidade que espanta, pois não apresenta manchas nem me parece estar beliscada.
    Parabéns pela aquisição da peça, que é de facto notável.
    Espero que continue a mostrar-nos estes mimos, que são um bálsamo para a alma.
    Votos de boa semana
    Manel

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  2. Caro Manel
    Agora também acho a travessa bonita, mas quando a vi pareceu-me algo estranha e confesso que a comprei movida pela curiosidade e pela diferença da decoração. Fiquei admirada com o que fui descobrindo sobre este padrão, afinal, muito mais comum do que eu pensava. A travessa realmente está em muito boas condições, só tem um pequeno restauro num dos cantos mas é coisa imperceptível. Obrigada pelo seu comentário. Tenho aqui mais algumas peças de origem inglesa diferentes mas tenho tido preguiça de as estudar :)
    Uma boa semana também para si

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  3. Que peça magnífica e que qualidade e a Maria Paula fez uma boa investigação acerca dela. Também é verdade que os ingleses tem tudo bem estudado e com paciência e persistência encontram-se conteúdos pertinentes na net, ao contrário da nossa faiança sobre a qual encontra-se sempre tão pouca coisa. Tenho agora uma chávena e um prato novos para mostrar, talvez de Coimbra e ando a adiar o post pois não tenho nada para dizer sobre elas.

    Quando as peças não estão marcadas é sempre difícil ser-se conclusivo, até porque diferentes fabricantes produziam peças idênticas para satisfazer um gosto dominante. No entanto, quem sabe se daqui a uns 3 ou 4 anos não encontra na net ou no chão de uma feira de velharias uma peça idêntica marcada?

    Bjos

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  4. De facto Luís há muita informação sobre a produção das louças inglesas desde os tempos mais remotos.Há já algum tempo que descobrir as imagens que dão origem às diferentes decorações tornou-se, para mim, num desafio muito estimulante.E como muito bem diz com tempo e paciência chega-se lá. Sobre a nossa faiança é assim mesmo,os poucos registos existentes, não nos permitem ter certezas de nada, o que se torna deveras frustrante e dá asas à imaginação.Há tempos na net descobri uma travessa de porcelana russa com uma decoração que fez lembrar, calcule, a nossa faiança do Juncal. Andei que tempos a olhar para a foto a maturar nas semelhanças e num belo dia de exceso de zelo ao limpar o pc mandei-a para a lixeira.Vou tentar encontrá-la de novo para lha mostar.
    Bjs e boa semana

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    1. Maria Paula

      As artes em cada país não são coisas estanques e há motivos decorativos que viajam pela Europa fora e outros que chegam do Oriente. Talvez aquela decoração muito simples do Juncal seja uma singela adaptação de uma louça qualquer europeia.

      O Manel tem um pires muito bonito com uma decoração do tipo Juncal, mas eu acho a faiança demasiado fininha e bem acabada para ser Juncal. Parece-me uma coisa luxuosa e a faiança que vi em museus do Juncal é mais grosseira e menos delicada, embora seja muito bonita. Creio que há ainda muito para estudar sobre a viagem de motivos decorativos na louça europeia.

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  5. Querida Maria Paula,


    Como tenho falado, aproveito os computadores de parentes para atualizar visitas, etc.

    Certa vez disse ao Luis, do Velharias, que grande parte da história da Humanidade pode ser contada pelas decorações da louças, sobretudo inglesas. Com o Manel concordo que esta é uma belíssima travessa e também fico torcendo como o Luis, para que encontre uma peça idêntica mas marcada, para dirimir as dúvidas.

    Penso que fez uma boa pesquisa, embora tão pouco de louça inglesa eu conheça. Mas adoro exatamente por ser condutora de tantos temas atraentes e diversos, como Você mencionou.

    Também estou juntando umas pecinhas inglesas para um post. Nada de grandes e oitavadas travesas... muito menos um pesado borrão, que por aqui são tão caros. Mas pratos, etc, que trazem temas da Fauna, Flora, Paisagens e Mitologia.

    Meu último post foi um vaso DEVEZAS e adoraria saber um pouco mais sobre ele. Como sabe a Cerâmica Portuguesa é minha primeira paixão neste segmento de velharias. Mas disponho de pouca literatura. Aliás, o Luis notou certa vez que muitas louças, mesmo a tão querida portuguesa carecem de extensiva e mais bem detalhada catalogação, como a Inglesa, que é o melhor exemplo entre elas.

    Um abraço.

    ab

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    1. Caro Amarildo
      Muito obrigada pela sua visita. É sempre com muito gosto que o vejo por aqui a partilhar a sua opinião. Tal como o Amarildo gosto muito da faiança inglesa e portuguesa. Posto numa balança este meu bem querer, não sei para qual dos pratos tenderia.Mas reconheço que alguma faiança portuguesa tem caraterísticas imbatíveis e inimitáveis como por exemplo a ingenuidade das reproduções. Quanto às Devezas tenho uma travessa sem marca. Portanto, não passa de uma atribuição, mas acredito que sim, pois a aba apresenta um relevo muito idêntico a outra marcada que vi à venda.Andei no seu blog e não consegui encontrar o post sobre as Devezas. Vou procurar melhor pois ainda não estou muito familiarizada com aquela apresentação do google.
      Um abraço

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